A propósito da “Colecção de Clássicos da Literatura Portuguesa Contados às Crianças”, uma publicação conjunta do semanário Sol e das Quasi Edições.
O título deste texto, praticamente decalcado de uma famosa canção do álbum The Wall dos Pink Floyd, pretende denunciar a tendência de alguns intelectuais se intrometerem entre as crianças e os livros, porque supõem que as crianças de hoje não gostam de ler ou que, de facto, não lêem. Antes de mais, esta suposição é muitíssimo discutível, pois não temos dados precisos sobre os gostos e a quantidade de leitura das crianças de hoje. Por outro lado, não temos, mesmo, dados sobre os gostos e a quantidade de leitura das crianças de outros tempos, de modo que não podemos proceder a qualquer comparação objectiva entre gerações. Ainda que sem fundamento científico, a dita suposição tem justificado o recurso a uma estratégia que se vai instalando, progressiva e confortavelmente, entre nós: em vez de se passarem para as mãos das crianças obras originais, passam-se-lhes extractos breves e adaptações ligeiras das mesmas, em que se nota um cuidado cirúrgico em extrair ou substituir toda e qualquer palavra ou frase supostamente mais difícil, para que as crianças não sintam nenhuma dificuldade ao ler os textos e, assim, não se “desmotivem”. Para tornar esses extractos e adaptações ainda mais atractivos, rodeiam-se de amplas e garridas ilustrações. Se nos manuais escolares de Língua Portuguesa do Ensino Básico esta estratégia é uma constante, porque não estendê-la a outras iniciativas para captar a atenção dos pequenos leitores, de modo que um dia sejam grandes leitores? Esta deve ter sido a pergunta que o semanário Sol e as Quasi Edições fizeram e que desencadeou uma parceria entre ambos para adaptar textos de alguns dos nossos melhores autores. Trata-se da “Colecção de Clássicos da Literatura Portuguesa Contados às Crianças”, sendo os clássicos em causa os seguintes: Sermão de Santo António aos Peixes, de Padre António Vieira; Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; Frei Luís de Sousa e Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett; A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis; Amor de Perdição e A Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco; Os Maias, A Cidade e as Serras e A Relíquia, de Eça de Queirós; O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa. Não se trata de clássicos, no sentido específico do termo, mas de autores ou obras cujo valor é reconhecido por todos.
Os livros que até ao momento saíram são muito fininhos, com caracteres muito grandes, palavras destacadas, frases dispersas por linhas irregulares, ilustrações que ocupam páginas inteiras, remetendo o texto para um lugar secundário. E que texto? Não o texto esperado, o do grande escritor, mas um outro texto, o do autor da adaptação ou do resumo, que nem adaptação chega a ser. Facilmente se retira a seguinte conclusão: os autores responsáveis por estas adaptações, que são escritores e professores universitários, alguns deles com uma forte influência na opinião pública em matéria de cultura e de educação, consideram que para as meninas e os meninos se prenderem à leitura dos clássicos, o melhor é poupá-los à leitura dos clássicos. Antes de tudo, o procedimento em causa não está isento de uma reflexão ética: que legitimidade tem um escritor, por muito mérito que lhe seja atribuído, de mexer na obra de outro escritor? Ainda que daí resultassem ganhos importantes em termos de gosto e competência na leitura das crianças, não se pode negligenciar o princípio de que nem todos os meios justificam os fins, por muito louváveis que estes se afigurem. No caso concreto, estamos em crer que esta questão nem se chega a pôr, pois não há qualquer ganho, mas o contrário. Com base em dados da investigação pedagógica podemos afirmar, com segurança, que independentemente do nível socioeconómico, cultural, étnico ou outro aspecto distintivo, as crianças:
- adquirem competências na leitura e gosto por ler se os adultos que as acompanham lhes proporcionarem, desde idades precoces, bons textos e as ensinarem, por um lado, a inferir a informação neles implícita e, por outro, a apreciar os próprios textos;
- não se desmotivam quando encontram palavras desconhecidas ou frases estranhas nem quando se confrontam com textos extensos sem imagens, desde que os adultos estejam atentos e consigam gerir o grau de dificuldade que se lhe deve proporcionar.
Enfim, as crianças compreenderão e prender-se-ão aos clássicos se tiverem contacto com eles. Outro aspecto a destacar é o seguinte: as obras dos grandes escritores, agora adaptadas, são literatura, são criação, são obra de arte. E a obra de arte deve ser inviolável. Não passa pela cabeça de ninguém, por exemplo, macular um quadro de um grande pintor, retirando-lhe elementos, esmaecendo cores ou transformando algumas das figuras ou paisagens retratadas, para que uma criança o interprete melhor. Do mesmo modo, na obra literária tal não pode ser feito, sob pena de estarmos a estragar o que é belo, a ultrajar o autor e a enganar o leitor, que pensa que está a ler um clássico e, está, afinal, perante um produto medíocre, que, naturalmente, o fará detestar a literatura, por pensar ser literatura aquilo que lhe apresentam como tal. (...)
Maria Helena Damião (Consultora do CFPA)
e
Maria Regina Rocha (Formadora do CFPA)
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