Reproduz-se, o essencial duma conversa sobre a noção de Verdade no campo da Ciência, entre o matemático e professor catedrático da Universidade de Coimbra Eduardo Marques de Sá e alunos do Mestrado de Supervisão Pedagógica e Formação de Formadores, que teve lugar na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da mesma Universidade.
É ponto assente que na ciência se procura a verdade. Mas que verdade é essa que se procura na ciência? De facto, na ciência procuram-se verdades, mas há critérios de verdade distintos. Nas ciências da natureza, procura-se a verdade na confrontação entre as conjecturas e a realidade que nos cerca. Na Matemática, essa verdade decorre da coerência interna. Desde Aristóteles que nesta disciplina se procuram as regras de bem pensar mas, como deverão saber, no final do século XIX, encontraram-se contradições que obrigaram os matemáticos a apurar as regras do pensamento a que devemos obedecer, ou seja, a lógica matemática.
Eu diria, que o físico procura descobrir as leis do Universo e não se pode falhar nos processos de inferência a partir da observação da natureza, enquanto o matemático infere a partir de hipóteses, por vezes arbitrárias, mas sempre a com base na lógica, sem se poder desviar da lógica…
Entende que tanto nas ciências naturais como na matemática a verdade é, como por vezes se afirma, provisória?
A passagem das leis é perene. Cabe ao cientista a persistência na busca e a humildade de aceitar a fugacidade. A sua glória? É fazer evoluir o conhecimento. A morte de uma verdade é o garante da evolução científica. O desafio? A procura do inatingível, do fugaz, do indeterminado. Para um matemático, o desafio é saber qual verdade atingível. No início do século passado, Bertrand Russell abanou a estrutura do edifício científico ao perceber e fazer-nos perceber que há na matemática o que ficou conhecido como A Crise dos Fundamentos da Matemática.
Na educação, precisaríamos de um Bertrand Russell?
Desculpe, mas temos o Nuno Crato! (Risos). Tem havido muitos movimentos nesse sentido. No final dos anos 60 importámos a matemática moderna. É linda, mas para ensinar não serve: uma coisa é a ciência; outra, o seu ensino. Os processos cognitivos do cientista e do aluno são distintos. Percebendo isso, em 1975, os americanos abandonaram a matemática moderna nos seus 50 estados, por cá, em 1978, decidimos alargá-la ao ensino primário. Foi um desastre. Outro aspecto crítico do ensino da matemática é a sobrevalorização dos níveis cognitivos superiores, abandonando a memorização, numa tentativa de eliminar os exageros que a história da educação nos diz que aconteceram. Ora, a preparação do matemático ou a de um jogador de xadrez, por exemplo, não dispensa a memória. No caso do xadrez, sabe-se hoje que a criatividade e a inspiração tem um peso de 5%.
Tendo um conhecimento profundo dos programas de ensino, que considerações lhe merecem?
Estão mal escritos, os textos são demasiado extensos, o que denota falta de clareza nas ideias, isto em primeiro lugar. Depois a interdisciplinaridade (entre Educação Visual, Ciências Naturais e Matemática), de que tanto se fala, é nula. Em terceiro lugar, as metodologias são normalizadas (“o professor deve…”), configurando-se uma interferência na esfera de competência do professor e, pior, são dadas recomendações de estratégias que não são adequadas e que se sabe não resultarem… Participei num estudo comparativo em que se analisaram os programas de alguns países europeus: os espanhóis, por exemplo, têm programas muito curtos, muito claros enquanto os nossos não cessam de aumentar: o programa de Matemática tem perto de 100 páginas com letra muito pequena e entrelinhamento mínimo, o de Língua Portuguesa tem perto de 200 páginas…
Falou num estudo dos programas...
Os estudos são encomendados, são feitos, mas não saem da gaveta…
Voltemos à verdade em ciência… Para a conseguirmos, não podemos fazer “aldrabice”…
A um cientista, a um matemático, sai muito caro fazer “aldrabice”. Se nos enganarmos numa dedução e o erro não for detectado pelo apertado crivo da revisão científica, esse erro fica no nosso currículo, como uma nódoa. Não tem perdão.
E em Educação, quais as consequências dos erros pedagógicos que tantos têm denunciado e que se encontram bem patentes nos programas?
Bem, aí, o erro é bem pior. Paga-se ao longo de gerações, como o efeito de uma explosão nuclear que perdura muito depois de explodir. Veja-se o caso do abandono da memorização… não é só na matemática que tem tido consequências nefastas: tem condicionado a aquisição de competências linguísticas. Outro é o erro, muito por influência do ideia de conservação piagetiana do número, que leva a que, no primeiro ano de escolaridade, só se ensine a contar até 20!
E o professor, o que deve ele fazer: obedecer ao programa, ou agir com bom senso?
Com bom senso, claro! Quando fazemos uma investigação, procuramos a verdade possível, de forma honesta. O que publicamos pode ter eco ao longo de muito tempo. O que se passa em educação, é que não há critérios de verdade. Veja-se, por exemplo, com Bolonha, passou-se do paradigma do conhecimento para o paradigma das competências. Serão indissociáveis? Ou ainda este erro: “…o professor é um mero orientador de aprendizagens…”, nesta lógica, o professor tem sido despojado da sua função, que é ensinar. E, associado a tudo isto, a transmissão de valores também não tem sido feita, numa altura em que até a própria família entrega essa responsabilidade à escola. Também, ao longo dos últimos anos, temos assistido ao desmantelamento de todo o sistema de avaliação. O único que tem resistido é o exame do 12.º ano.
Qual o caminho para que também nesta área que é a educação nos conduzamos por verdades científicas? Haverá solução?
Veja-se o caso da China Popular que ficava sempre no topo da avaliação internacional a Matemática bem atrás dos Estados Unidos da América, com um investimento enorme no ensino chegou aos resultados que o Pisa nos mostra. O que faz a diferença? Assumiu-se na China que a solução para o sucesso passa pelos valores, pelo rigor, pelo respeito, mas também pela valorização da memorização e pelo enriquecimento dos conteúdos, contrariamente à centralização nas competências.
Helena Damião
Consultora do CFIAP